Um crescente número de historiadores, analistas e cientistas políticos dos Estados Unidos, de diversas correntes ideológicas, passou a utilizar o termo “golpe” para descrever as ações de Donald Trump após seu primeiro mês de mandato. Entre os que defendem essa posição estão os historiadores Timothy Snyder e Ruth Ben-Ghiat, os cientistas políticos Steven Levitsky e Adam Przeworski, além de comentaristas da direita e centro-direita, como o jornalista Martin Wolf e a economista Jessica Riedl, do Manhattan Institute. Eles argumentam que as ações do presidente dos EUA colocam em risco a democracia e podem caracterizar uma ruptura institucional.
“É claro que é um golpe”, escreveu Snyder, professor da Universidade Yale e autor de “Sobre a Tirania”, que popularizou o conceito de “obediência antecipada” a tiranos.
“As ações contínuas de Elon Musk e seus seguidores são um golpe, porque os indivíduos que estão tomando o poder não têm direito a ele. Ele não foi eleito para nenhum cargo e não há cargo que lhe daria autoridade para fazer o que está fazendo. Tudo isso é ilegal”, escreveu Snyder em sua coluna no Substack.
A preocupação com o enfraquecimento do Estado tem ganhado destaque desde a posse de Trump. Desde então, houve pressões para que funcionários públicos se demitissem, o fechamento de agências governamentais e o bloqueio de recursos federais destinados a estados e ONGs. O Doge, departamento criado por meio de um decreto presidencial, foi encarregado de reduzir os gastos, com Elon Musk à frente. A medida afetou a estabilidade dos servidores públicos, ao mesmo tempo em que o Executivo assumiu funções que tradicionalmente cabem ao Congresso, como a gestão orçamentária.
“Eles estão determinados a destruir o governo, não a fazer um ajuste por meio de reformas institucionais”, disse Przeworski, estudioso da democracia na New York University e que cunhou o termo “autoritarismo furtivo”.
“Eu adoraria ver cortes de 30%, 40% ou até mais em algumas agências governamentais. Mas siga a Constituição, vá ao Congresso e veja o que a maioria dos legisladores devidamente eleitos está disposta a aprovar”, afirmou Jessica Riedl, que foi assessora econômica de políticos republicanos. Ela vê uma clara “erosão da democracia”.
Wolf, colunista do Financial Times e influente pensador de centro-direita, considera que as demissões em massa e a substituição de funcionários de carreira por aliados políticos têm como objetivo “transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, na qual o detentor do poder é rei”.
Em sua coluna mais recente, Wolf afirmou que as reformas implementadas por Musk e Trump não visam tornar o governo mais eficiente. Ele destacou que a estratégia foi revelada por J. D. Vance, então senador e hoje vice-presidente, em entrevista a um podcast conservador em 2021.
“[Trump] deveria demitir todos os burocratas de nível médio, todos os funcionários públicos no Estado administrativo, substituí-los por nosso pessoal… E, quando os tribunais o impedirem, ficar ao lado da nação como [o ex-presidente] Andrew Jackson e dizer: ‘O presidente da Suprema Corte tomou sua decisão, ele que a ponha em prática.”
Em 1832, o presidente Andrew Jackson se recusou a cumprir uma decisão da Corte Suprema em uma disputa entre o estado da Geórgia e os indígenas cherokees. A declaração atribuída a Jackson, embora provavelmente apócrifa, ficou marcada como um episódio de confronto com o Judiciário.
A historiadora Anne Applebaum, autora de Autocracia S.A., compara as demissões no funcionalismo promovidas por Donald Trump aos expurgos realizados pelo ditador venezuelano Hugo Chávez, que demitiu 19 mil funcionários da PDVSA, e pelo primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban, que eliminou as proteções trabalhistas do setor público. Applebaum descreve as ações de Trump como um “golpe” e uma “mudança de regime”.
Para Ruth Ben-Ghiat, professora da Universidade de Nova York e autora de Strongman, Donald Trump introduziu uma versão moderna do autoritarismo, caracterizada por inovações como a velocidade das mudanças e a liderança compartilhada entre Musk e Trump.
“Sou historiadora de golpes, e também usaria essa palavra. Estamos em uma situação de emergência real para nossa democracia.” Na visão do economista progressista PaulKrugman, há uma “tentativa de autogolpe”.
Steven Levitsky, professor da Universidade Harvard e autor de Como as Democracias Morrem, considera provável que a democracia nos EUA entre em colapso durante o segundo mandato de Donald Trump, ao “deixar de atender aos critérios padrão de uma democracia liberal: sufrágio universal adulto, eleições livres e justas, e ampla proteção das liberdades civis”.
Em um ensaio publicado na revista Foreign Affairs e reproduzido pela Folha, Steven Levitsky afirma que os EUA não enfrentarão uma ditadura clássica, como a de “tanques na rua”, mas sim um modelo de autoritarismo competitivo. Segundo ele, nesse sistema, os partidos continuam competindo nas eleições, mas o abuso de poder por parte do detentor do cargo desequilibra a disputa, colocando a oposição em desvantagem.
Entretanto, há quem adote uma postura mais cautelosa. Em editorial, o Wall Street Journal afirma que, apesar das ações agressivas de Trump, elas não configuram um golpe. O jornal, que pertence a Rupert Murdoch, também proprietário da Fox News, que tem dado cobertura positiva ao governo Trump e de onde foram escolhidos alguns ministros. Para o WSJ, os que falam em “crise constitucional” estão exagerando a situação.
“A verdadeira crise virá se Trump contestar uma decisão da Suprema Corte. Se isso acontecer, e pode acontecer, a esquerda vai querer não ter desperdiçado sua credibilidade ao gritar ‘lobo’ tantas vezes sobre crises que não existiam. Por enquanto, os leitores podem relaxar.”