Relatório sobre as condições de vida e acesso a direitos de crianças e adolescentes, divulgado no início do mês de agosto pela Aldeias Infantis SOS, por meio do Instituto Bem Cuidar, indica que 32 mil estão afastados do convívio familiar, em serviços de acolhimento, sendo mais de 80% concentrados nas regiões Sudeste e Sul do país.
Conforme o documento, a faixa etária é diversificada, sendo 25% delas com idade entre 0 e 5 anos, 27% entre 6 e 11 anos, 44% entre 12 e 17 anos e 5% com 18 anos ou mais.
O estudo, realizado entre novembro de 2022 e março de 2023, abrange todas as regiões do país, incluindo 23 estados, o Distrito Federal e mais de 200 municípios. Durante esse período, foram ouvidos mais de 350 crianças e adolescentes sob a guarda do Estado, acolhidos em casas lares e abrigos públicos e de organizações não governamentais.
“Nosso objetivo com a pesquisa é difundir vozes de crianças e adolescentes em acolhimento, da juventude egressa desses serviços e famílias que estão em situação de risco de perda do cuidado parental, a fim de contribuir e qualificar o sistema de atendimento e os poderes públicos”, destaca José Carlos Sturza de Moraes, coordenador geral do Instituto Bem Cuidar.
Segundo o especialista, a pesquisa revelou que muitas das dificuldades enfrentadas pelas famílias vulneráveis no cuidado parental estão relacionadas à ausência de políticas públicas adequadas, fazendo recair uma injusta culpabilização sobre grande parte delas, especialmente econômica.
Um dado que chama a atenção é a verificação de que quase 40% dos jovens entrevistados estiveram em situação de acolhimento por mais de 18 meses, período superior ao estabelecido pela legislação brasileira. Entre esses casos, meninos e aqueles que se autodeclararam negros foram os mais afetados. Além disso, cerca de 60% dos entrevistados viveram em mais de um serviço de acolhimento.
Outro aspecto relevante é o alto percentual de crianças e adolescentes que não recebem visitas familiares, sendo que seis em cada dez acolhidos não têm esse contato. Por outro lado, foi constatado que a maioria (56,14%) recebe atendimento psicoterápico individual e cerca de 13,16% relatam interesse em receber apoio psicológico. Entretanto, não o recebem.
O relatório destaca ainda a importância de abordar de forma abrangente a saúde mental e o bem-estar dos jovens em serviços de cuidados alternativos. Além dos sintomas emocionais frequentes, como tristeza, irritação e preocupação, que podem afetar seu estado emocional, o desempenho escolar também se mostra preocupante. Mais de 15% dos entrevistados afirmaram apresentar baixo rendimento escolar de maneira constante, o que indica a necessidade de atenção especial às suas necessidades educacionais.
A pesquisa identificou ainda que muitos adolescentes desejam voltar a morar com suas famílias ou, pelo menos, retomar o contato, demonstrando a importância contínua do núcleo familiar mesmo após o afastamento. No entanto, eles desejam mais. Querem conquistar condições para ajudar suas famílias, de forma protagonista e autonomia.
“Queríamos trazer para essa pesquisa as vozes das crianças, a escuta de quem realmente estará na ponta no dia a dia, para ajudar na tomada de decisões de políticas públicas envolvendo crianças”, reitera Alberto Guimarães, Gestor Nacional da Aldeias Infantis SOS, destacando a relevância da pesquisa para o futuro das crianças do país.
Jovens que deixaram os serviços de acolhimento com 18 anos ou mais também foram ouvidos, constatando a necessidade urgente de apoio e ação pública em seu processo de transição e adaptação à vida fora dos serviços de acolhimento. Alguns dos entrevistados relataram ter recebido suporte adequado em suas transições e após saírem, enquanto outros descreveram uma completa falta de apoio.
Negligência
A negligência foi apontada como o motivo mais comum para o acolhimento de crianças e adolescentes nos serviços de cuidados alternativos. Esse aspecto é enfatizado pelos profissionais e autoridades entrevistados, que questionam a validade do termo negligência, quando associado à incapacidade das famílias de cuidarem adequadamente de seus filhos.
Muitas vezes, as situações de negligência estão relacionadas à falta de acesso a políticas públicas básicas, como ausência de vagas em creches e insegurança alimentar.
Na análise, que utilizou uma escala de 0 a 10, negligência figurou com índice de 9,21, sendo o maior motivador de acolhimento em todas as regiões brasileiras, com maior destaque na região Sudeste (9,42).
Diante dessas constatações, a pesquisa recomenda a adequação dos termos empregados para diagnosticar situações de risco, podendo distinguir claramente violações de direitos, inadequações nas condutas de cuidado e agentes que violam direitos.
“A pesquisa nos traz informações importantíssimas, que mostram o tamanho e o reflexo do campo das desproteções, na grande área da assistência social que vivemos nos últimos anos. Isso se traduz de alguma forma nesses dados”, afirma Elias de Souza Oliveira, Presidente do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas).
Essa abordagem tem o objetivo de evitar atribuir uma responsabilidade desigual entre as famílias atendidas, quando, segundo a Constituição, esse dever precisa ser compartilhado entre a família, a sociedade e o Estado.
Demais motivadores
A violência física e/ou psicológica ocupou a segunda posição com uma nota nacional de 8,27, sendo que as regiões Sudeste (8,50) e Sul (8,56) apresentaram pontuações ainda mais altas que a média registrada no restante do País.
A pesquisa mostra ainda a proximidade dos índices de crianças e adolescentes em acolhimento devido a situações de exploração sexual (5,48) e os relacionados à insegurança alimentar (5,21), indicador diretamente associado à pobreza.
Também é importante destacar que o motivo relacionado à orfandade obteve a menor pontuação, sinalizando que é uma das motivações menos comuns para o acolhimento em serviços de cuidado alternativo. Nas regiões Sudeste (3,93) e Nordeste (3,91), as pontuações foram ainda menores que a média nacional (4,15).
Os resultados da pesquisa são reveladores e destacam a necessidade de uma ação urgente para garantir melhores condições de vida e acesso a políticas públicas para famílias em risco à ruptura de vínculos, melhor atendimento às crianças e adolescentes em serviços de cuidados alternativos e apoio continuado às juventudes que saíram desses serviços.
“Para se ter uma mínima informação sobre a doença, o médico precisa medir a pressão e a temperatura do paciente. Uma pesquisa desse gênero nos ajuda no desenho de uma política pública correta”, ressalta Raul Christiano de Oliveira Sanchez, Secretário Executivo da Secretaria Estadual da Justiça e Cidadania.
Com os resultados, a Aldeias Infantis SOS quer reforçar suas estratégias de atuação, mantendo o compromisso de promover cuidado e acolhimento para atender às necessidades desses jovens e proporcionar-lhes um futuro mais promissor.
A divulgação da pesquisa em São Paulo, que ocorreu na FAPCOM, é fruto da parceria entre a Aldeias Infantis SOS e o Instituto Paulus, que forneceu o lugar e viabilizou a impressão de milhares de exemplares, marcando a quinta apresentação promovida Organização.
Estiveram presentes na apresentação representantes dos municípios da Grande São Paulo (São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo, Mauá, Rio Grande da Serra, Guarulhos, Poá e Cajamar), Vale do Paraíba (Lorena, Aparecida e Potim), Litoral (Santos, São Sebastião e Cubatão), além de outras cidades do interior como Campinas, Piracicaba, Limeira e Itapetininga, entre outras.
Também marcaram presença diversas Organizações da Sociedade Civil, como o NECA (Associação de Pesquisadores e Formadores da Área da Criança e do Adolescente), Instituto Alana e Instituto Fazendo Minha História, entre outras. Ainda compareceram diversos Conselhos Municipais e o Conselho Estadual e de Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca-SP).
O evento realizado no último dia 2 foi um passo importante para o início de uma articulação coletiva que visa priorizar a escuta de mais as crianças, adolescentes em situação de acolhimento e jovens egressos, bem como as famílias que perderam ou estão em risco de perder o vínculo familiar.
A intenção é beneficiar todas as regiões, de forma a provocar reflexões positivas sobre oportunidade de melhorias no sistema de garantia de direitos. O primeiro evento ocorreu em maio, em Belo Horizonte, enquanto os próximos seguirão o cronograma abaixo:
Agosto
11 – Maringá/PR
17 – Belém/PA
Outubro
4 – Porto Alegre/RS