O legado do povo negro para a cultura e a formação da identidade brasileira é algo tão decisivo para os distintos campos das artes e do conhecimento que sem esse traço determinante o Brasil seria outro país – mais pobre culturalmente, sem dúvida, e menos vigoroso e diverso.
Neste domingo (20), Dia da Consciência Negra, data – a exemplo dos outros 364 dias do ano – propícia à reflexão sobre desafios e a necessidade de reparações históricas, é preciso também celebrar as conquistas das pessoas negras nas variadas áreas da cultura e do conhecimento.
A poeta, dramaturga, ensaísta, doutora em artes cênicas e professora Leda Maria Martins, da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG, considerada uma das principais pensadoras do teatro brasileiro, em especial das artes cênicas negras, faz questão de ressaltar que, se hoje podemos comemorar avanços e realizações, isso é resultado de séculos de “um trabalho fenomenal”, de uma produção e um pensamento que nunca deixou de acontecer, mas que encontrou, nos últimos anos, um espaço mais inclusivo para florescer.
Para Leda, é essencial realçar, sem deixar de ponderar as dificuldades, traumas e carências históricas, como o conhecimento advindo dos povos pretos foi e é extremamente relevante na formação cultural brasileira. Ao serem trazidos escravizados para as Américas, uma gama vasta de conhecimentos estéticos, artísticos, científicos, filosóficos e tecnológicos influenciou decisivamente todas as áreas do saber.
“Sempre houve a luta pela conquista da cidadania, da liberdade. O que temos visto nas últimas décadas são práticas pulsantes, potentes e que têm conquistado a sua presença seja como gestores, seja como criadores. Junto a isso, vem o alçamento das artes negras e indígenas e o como de processar suas criatividades, de pensar o país”, comenta Leda Maria Martins, finalista do Prêmio Jabuti deste ano com o livro “Performances do Tempo Espiralar, Poéticas do Corpo-tela” (Editora Cobogó, 2021) e vencedora, na semana passada, da categoria Aprender do Prêmio Milú Villela – Itaú Cultural 35 anos.
“Tenho ficado muito feliz com essa produção, que, a partir do âmbito das artes, provoca o status quo. Isso é extremamente relevante. São gerações de várias idades como protagonistas visando transformar o sistema”, completa a intelectual carioca radicada em Belo Horizonte.
A cantora, compositora e multi-instrumentista mineira Nath Rodrigues começou a trilhar seu caminho na música ainda na infância, em Sabará, na região metropolitana de BH, quando, no fim dos anos 1990, começou a estudar violão. A artista, que tem dois discos autorais lançados – “Fractal” (2019) e “Fio” (2022) – e também circula pelas artes cênicas, com participações nos espetáculos “Madame Satã” e “Zumbi”, afirma que, sim, o 20 de novembro deve ter tom de celebração, embora o Brasil seja “um país tão cheio de questões todos os dias”.
“Mesmo com o retrocesso ideológico que vivemos como sociedade nos últimos anos, não existe passo atrás. Uma vez que um grupo de pessoas pretas consegue gradativamente avançar e que a consciência antirracista é aberta, não tem como voltar. Devemos celebrar nossas conquistas nas artes, na educação, na tecnologia, que não acontecem de hoje, porque o povo preto brasileiro sempre lutou, nunca foi passivo”, enfatiza a cantora. Segundo Nath, “o desafio é cada vez mais trazer pessoas negras para essa possibilidade de abertura”.
Os festejos, Nath observa, são importantes porque revelam e enaltecem as conquistas das pessoas negras nos diferentes campos da cultura e criam uma narrativa que explicita o empoderamento, a beleza e a força da produção cultural negra por meio da poesia, da memória, do que é sutil e humaniza as pessoas pretas. O longa “Marte Um”, de Gabriel Martins, é, nesse sentido, um exemplo que merece ser reverenciado, ela frisa.
O filme tem diretor negro, protagonistas e elenco majoritariamente negros e foi escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2023. “O filme é muito poderoso, traz nosso modo de existir. Eu me vi várias vezes nele”, diz Nath Rodrigues. A cantora diz que todas as mudanças ligadas à negritude dependem também de oferta e um cardápio de possibilidades, da comida até a música: “Foi isso que mudou meu destino: oportunidade”.