A pandemia de covid-19 traz incertezas para todos os setores da nossa sociedade. A população teme pela saúde das suas famílias e entes próximos, enquanto as organizações privadas veem seus planos e atividades em suspenso, com graves consequências econômicas. Também os governos são duramente afetados pela pandemia, seja em termos do impacto nas finanças públicas, seja na sua capacidade operacional e mesmo na popularidade de líderes que precisam tomar decisões difíceis e impopulares, em um cenário de incerteza.
Neste contexto, há grandes desafios para a gestão pública atuar de forma inovadora e eficiente no enfrentamento à pandemia. Merece destaque, portanto, uma experiência com bons resultados preliminares: a colaboração entre governos estaduais no Consórcio Nordeste.
Parcerias Público-Público
Um dos principais problemas na resposta brasileira ao covid-19 é a posição antagônica e de baixa colaboração do Governo Federal com relação aos estados e municípios que seguem as recomendações internacionais de políticas de isolamento social. Esse quadro resulta em uma resposta pouco efetiva do país no combate à doença e no atraso para o retorno das atividades econômicas.
Contudo, bons exemplos surgem quando há colaboração e parceria entre governos subnacionais. Podemos definir parcerias como arranjos voluntários entre diferentes organizações com intuito de contribuição e desenvolvimento mútuo[1]. Diante da escassez de recursos atual, a busca por uma melhor coordenação das diferentes agências governamentais – via parcerias com outras organizações públicas ou privadas – é crucial no enfrentamento da pandemia. Um caso de parceria pública-pública tem se destacado: o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste.
Criado em março de 2019 pelos governadores dos nove estados da região – ou seja, antes mesmo da pandemia e já estabelecendo um histórico de relações colaborativas – este consórcio busca desenvolver projetos com maior economia e cooperação, além de atrair investimentos e promover a troca de conhecimento. Em fevereiro deste ano foi inaugurada a sede do Consórcio Nordeste em Brasília, em espaço compartilhado com os Consórcios do Norte e Centro-Oeste, em mais uma demonstração do esforço de colaboração.
Evidências de sucesso
Duas evidências positivas sobre a efetividade do Consórcio Nordeste são a primeira compra de medicamentes e a instituição do Comitê Científico de Combate ao covid-19. Ainda em novembro de 2019, a primeira licitação do Consórcio Nordeste foi realizada, e permitiu a economia de quase R$ 50 milhões na compra de medicamentos para as redes públicas de saúde estaduais, mostrando o potencial da economia de escala que a colaboração destes governos estaduais pode contribuir.
Em março deste ano, o Consórcio anunciou a criação do Comitê Científico de Combate ao corononavírus, liderado pelo cientista Miguel Nicolelis e pelo ex-ministro Sérgio Rezende. Essa instância objetiva o monitoramento da pandemia e condução de pesquisas que permitam maior sustentação para a tomada de decisão dos Governadores. O Comitê que conta com a participação de representações de todos os estados da região, atuando em iniciativas inovadoras, desenvolvendo evidências científicas e colaboração governamental para o enfrentamento da pandemia. Entre suas principais atividades até o momento estão a compra de equipamentos e a criação em abril da Brigada Emergencial de Saúde do Nordeste, para ampliação do contingente de profissionais da saúde no atendimento à população, com estudantes do último ano de graduação e brasileiros formados no exterior.
Determinantes de uma boa colaboração
A experiência do Consórcio Nordeste está bem alinhada com a literatura de administração pública, que indica o ganho potencial de arranjos de governança colaborativa. Enquanto é bastante comum se discutir arranjos público-privados, esse caso evidencia a importância de também se promover a colaboração entre órgãos públicos.
Há determinantes que suportam a construção de parcerias longevas e de sucesso. Lideranças facilitadoras e comprometidas são exemplos desses fatores determinantes. No Consórcio Nordeste, os governadores da região parecem ter agido como lideranças facilitadoras e comprometidas desde o início. Isso possibilitou uma coalização suprapartidária dos diferentes governadores, com rodízio anual da liderança do Consórcio. Essa coalizão se reflete também em postura única do grupo sobre algumas pautas nacionais e locais, como a flexibilização das medidas de isolamento social e o enfrentamento à Pandemia. O Consórcio ainda se propõe a inovar nas formas de financiamento, com a possibilidade de criar fundos de direitos creditórios e imobiliários, por exemplo, o que pode se reverter em geração de valor para a sociedade[2]. Somada à inovação, há uma preocupação com o bom uso do recurso público. O Consórcio utiliza prioritariamente as estruturas já existentes nos governos estaduais, montando apenas uma pequena equipe para os projetos em comum.
Desafios pela frente
Problemas público complexos na área de saúde pública, na retomada da economia e no combate ao desemprego, entre outros, ressaltam a necessidade de se buscar soluções efetivas em um cenário de restrição orçamentária. O exemplo apresentado aqui indica um possível caminho para governos de diferentes níveis. Arranjos intermunicipais, entre governos estaduais e entre governos locais e regionais são uma alternativa para promover melhores respostas e coordenação da ação pública.
Certamente o governo federal poderia auxiliar muito nesse esforço, se passasse a priorizar a colaboração com outros níveis de governo. Se, por um lado, é positivo que parte dos governos subnacionais se dê conta de que não se podem contar com apoio do governo federal para sempre, por outro lado é um complicador adicional ao cenário de crise que haja conflito entre os diferentes níveis de governo.
Por fim, é preciso considerar que colaborações são arranjos dinâmicos. Lideranças mudam, processos precisam ser ajustados e a realidade impõe novos desafios. O aparente sucesso inicial do Consórcio Nordeste não é justifica uma celebração permanente ou a acomodação dos atores envolvidos. Os desafios públicos são imensos e uma colaboração responsável é essencial para o enfrentamento desses desafios.
Fontes:
CABRAL, S. et al. Value creation and value appropriation in public and nonprofit organizations. Strategic Management Journal, v. 40, n. 4, p. 465-465–939, 1 abr. 2019.
VAN DEN OEVER, K.; MARTIN, X. Fishing in troubled waters? Strategic decision‐making and value creation and appropriation from partnerships between public organizations. Strategic Management Journal (John Wiley & Sons, Inc. ), v. 40, n. 4, p. 580-580–603, 1 abr. 2019.
VAN DER VOET, J. Enhancing Public Innovation by Transforming Public Governance, or vice versa? Journal of Public Administration Research and Theory, v. 27, n. 4, p. 713–715, 19 maio 2017.
WILLIS, M.; JEFFARES, S. Four Viewpoints of Whole Area Public Partnerships. Local Government Studies, v. 38, n. 5, p. 539–556, 1 out. 2012.