Nos últimos anos a sociedade brasileira tem se deparado com os escândalos de corrupção que vem desviando bilhões de reais dos cofres públicos. O modus operandi desses esquemas são praticamente os mesmos: sempre há uma licitação, uma empresa ou um conjunto delas, um agente público ou um conjunto deles. A empresa corrompe o agente público para obter vantagem na licitação e, quando ela ganha o processo licitatório, novas remessas de propinas são destinadas a todos que participaram do esquema. O contrato é executado com aditamentos absurdos, pois o preço inicial foi, artificialmente, baixo. A execução do objeto do contrato, uma obra ou um serviço de impressão gráfica, por exemplo, é arrastada por anos e anos, de forma proposital, para mais dinheiro público ser desviado.
Nesse padrão, ou as empresas que participam do esquema se revezam a cada nova licitação, ou somente uma empresa detém o monopólio. Não faltam exemplos de empreiteiras, Odebretch, OAS, Camargo Côrrea, Queiroz Galvão, e outras que tinha setores inteiros destinados ao pagamento de propinas. São tantas as denúncias desse tipo que os órgãos fiscalizadores como os Tribunais de Contas já estão atolados com tantas irregularidades e a Polícia Federal continua deflagrando mais e mais operações e desdobramentos da Lava Jato.
Contudo, esse fenômeno não se restringe às obras públicas, isso acontece em todos os segmentos e em todos os níveis da federação. Os direcionamentos nas licitações acontecem de forma cada vez mais criativa no sentido de burlar as leis, a fiscalização e os entendimentos dos Tribunais de Contas.
O recente caso de monopólio das licitações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), para confecção de provas, é uma clara afronta ao princípio da isonomia. O INEP é o órgão responsável por aplicar as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e, desde 2010, vem contratando a mesma gráfica para suas licitações milionárias: a RR Donnelley.
A redação do Justiça em Foco obteve acesso aos documentos públicos que mostram um claro direcionamento do INEP à gráfica em questão. Essa história se inicia em 2009 quando houve vazamento e cancelamento das provas do ENEM naquele ano. Em caráter emergencial, segundo o INEP, “a única gráfica que apresentava os requisitos de segurança e sigilo necessários, e aceitou o desafio de imprimir 9,7 milhões de provas em menos de 30 dias, foi a Gráfica RR Donnelley”, trecho extraído do item 2.3.18 do Termo de Referência para o Pregão Eletrônico Nº 01/2019, que visa contratar “serviços de produção gráfica, em condições especiais de segurança e sigilo”.
A partir de 2010, o INEP lançou um edital para confecção das provas durante um período de 5 anos. Esse edital exigia um alto nível de sigilo e segurança nos pátios das gráficas, o que se justifica tendo em vista o recente vazamento. De forma premeditada, a própria empresa (RR Donnelley) que fora contratada com dispensa de licitação, sagrou-se vitoriosa nesse edital.
Outras licitações foram realizadas nesse meio tempo, pois o INEP aplica as provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), da Prova Brasil, do Encceja, do ENADE e do Banco Nacional de Itens. Em todas essas licitações, entre os anos de 2010 e 2016, somente uma empresa ganhou contratos da ordem de mais de R$ 250 milhões de reais: RR Donnelley.
Abaixo segue tabela com os valores e reajustes dos contratos da RR Donnelley:
Obviamente que esse monopólio chamou a atenção, não só das empresas concorrentes que disputam esses pregões, como da mídia especializada em assuntos jurídicos. Nesse sentido, em 2016, foi feita uma Representação ao Tribunal de Contas da União (TCU), pela Plural Indústria Gráfica, questionando as exigências do Edital de 2016 para o ENEM. O resultado dessa ação levou o TCU a emitir um longo parecer das irregularidades encontradas nas licitações anteriores e recomendou que o INEP ajustasse os termos dos editais subsequentes para que promovessem, de fato, a livre concorrência entre as empresas o que acarretaria melhores preços e economia do dinheiro público.
Dessa forma, com a aproximação do lançamento de mais um edital do INEP, para 2019, houve a feitura de uma Audiência Pública, em outubro de 2018, para dar mais transparência ao processo e dirimir dúvidas de todos os interessados. Basicamente, a reclamação das empresas concorrentes, que se fizeram representar na Audiência Pública em questão, se pautou em 3 itens exigidos pelo INEP:
- Definição do Método de Produção
- Galpão próprio (da empresa contratada)
- Áreas mínimas de produção (tamanho do galpão)
Cada uma dessas exigências pode ser entendida como mais uma medida técnica de “segurança” ou de “comprovação da execução dos serviços”, ou também pode ser traduzida como um direcionamento a empresa que sempre ganha. O primeiro item se refere às tecnologias empregadas nas impressões, os editais do INEP enumeram apenas duas tecnologias: impressão off-set e digital. Contudo, a inovação tecnológica avança muito rapidamente e novas impressoras mais rápidas, menores e mais precisas são disponibilizadas no mercado a cada ano. Enquanto os estudos da Associação Brasileira de Tecnologia Gráfica (ABTG), consultoria contratada pelo INEP, baseia-se em estudos de caso e dados de 2013 a tecnologia de impressões evoluiu bastante nesse ínterim.
Dessa forma, não parece razoável exigir métodos específicos de impressão, como atesta o TCU em parecer emitido em 2017: “Consideramos pertinente, entretanto, recomendar ao INEP que inclua em seus estudos técnicos preliminares as evoluções tecnológicas referentes à digitalização e automatização dos processos relacionados à impressão e preparação de provas, de modo a permitir adequação das exigências editalícias, especialmente as relacionadas ao método de impressão”.
No segundo quesito, exige-se que a empresa a ser contratada seja a proprietária dos galpões onde a impressão será realizada. Além de demandar um alto investimento para aquisição de imóveis desta grandeza, não há uma explicação clara do porquê uma empresa não pode, simplesmente, alugar um espaço com todas as ressalvas jurídicas necessárias para salvaguardar sua atividade.
Nesse sentido, o TCU se manifestou em parecer, dado em resposta à Representação da Plural Indústria Gráfica:“[…] o levantamento feito pela ABTG junto às empresas do setor para subsidiar as razões de justificativa ora em análise revela dados diferentes dos utilizados pelo Inep para a elaboração da exigência, o que demonstra que o processo de definição da exigência em tela se baseou em informações assimétricas, potencialmente incorretas e/ou desatualizadas, produzidas no âmbito dos estudos anteriores”.
Por último, a necessidade de áreas mínimas para a produção está atrelada tanto às tecnologias exigidas, como a posse de pátios próprios para a produção. Essas características essenciais à segurança se encaixam, perfeitamente, na realidade da empresa RR Donnelley, mas estão completamente fora da realidade das empresas concorrentes, como assevera o mesmo parecer do TCU: “A definição de áreas mínimas de produção surgiu do relatório técnico da ABTG emitido em 2013 quanto às fragilidades do ENADE daquele ano (peça 21, p. 196) e teria se baseado na experiência de anos anteriores das aplicações das provas pelo INEP, sem, contudo, tecer quaisquer considerações sobre os integrantes do mercado, nada obstante a declaração da contratada de queriam teriam se baseado em minucioso estudo técnico”. [Grifo nosso].
O fato é que um novo edital foi lançado e, novamente, as especificações direcionadas se fazem presentes nele ao arrepio das recomendações do TCU. No item 2.4.18 do Termo de Referência do INEP está escrito:
“Após análise acurada e aprofundada como recomendado pelo TCU o relatório apresentado traz o texto abaixo na sua conclusão: “Pelo exposto, sob a ótica de riscos e para a realização de processos de continuidade de negócios e acionamento de contingência, recomendamos que o Inep faça constar nos certames licitatórios para contratação de serviços de produção gráfica, em condições especiais de segurança e sigilo de seus exames, avaliações e aplicações de pré-testes, a exigência de uma Unidade de Contingênciacom capacidade de produção equivalente a, pelo menos, 50 (cinquenta) por cento da produção das provas e materiais administrativos objeto da contratação, e que esta unidade possua os mesmos processos, equipamentos e controles do ambiente de produção principal, em endereço diferente da unidade principal para evitar que os fatos supervenientes e imprevisíveis também afetem a unidade de contingência no caso de indisponibilidade da unidade principal, assim comorecomendamos que a Unidade de Contingência seja de mesma propriedade da gráfica contratada pelo Inep de forma a garantir a compatibilidade entre processos, controles, estruturas organizacionais, interlocutores em situação de emergência e responsabilização legal.”
Depreende-se, portanto, que, para concorrer às licitações do INEP, as gráficas terão que fazer um investimento milionário na aquisição de, pelo menos, um galpão que corresponda a 50% do volume de impressões. Certamente há claro direcionamento para a empresa ganhadora e total falta de compromisso com a isonomia e com a livre concorrência nas licitações das provas do ENEM. Resta saber se essa prática irá continuar se perpetuando durante a gestão do novo governo de Jair Bolsonaro.