Nada como um caso exemplar para elucidar pontos polêmicos do debate em torno do comportamento das grandes plataformas digitais em relação aos conteúdos que veiculam. É o que está acontecendo esta semana, com o criminoso episódio da divulgação do nome e da localização da menor violentada no Espírito Santo.
No fim de semana, uma ordem judicial obrigou Twitter, Google e Facebook a removerem postagens revelando o nome da criança. A Justiça do Espírito Santo atendeu ao pedido da Defensoria Pública do Estado, dando 24 horas às plataformas para cumprirem a decisão. 24 horas nas quais a repercussão do caso inflamou a opinião pública.
Teve quem pedisse a prisão imediata extremista Sara Winter, pelas publicações revelando a identidade da menina. E quem defendesse a retirada de seus perfis do ar. Teve as redes sociais dando respostas evasivas à imprensa sobre a remoção das publicações. E até quem alegasse que a identidade da menor já havia vazado na rede antes de perfis populares ampliarem sua visibilidade.
Nada surpreendente, para quem acompanha de perto os meandros da comunicação digital. E um prato cheio promover reflexões importantes a cerca de uma questão fundamental: a responsabilidade das plataformas quanto ao conteúdo publicados por terceiros.
Para começo de conversa, a exposição dos dados pessoais de uma criança é um crime. O Estatuto da Criança e do Adolescente deixa isso bem claro em dois artigos: o 17, que diz que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”, e o 18, que estabelece que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”
Portanto, a rigor, as plataformas digitais não precisariam esperar uma ordem judicial para indisponibilizar o acesso ao conteúdo ilegal. Bastaria fazer cumprir os seus termos de uso. O problema é que, com bem lembrou recentemente Felipe Neto, falta a elas celeridade e transparência nessa aplicação.
O debate sobre proibição vs. autorização vs. obrigação das plataformas é um dos mais prementes hoje. Nesse caso, em particular, por se tratar de um crime, elas não são proibidas de indisponibilizar sumariamente as postagens com conteúdo ilegal. Na verdade, são autorizadas pelo Marco Civil da Internet a fazê-lo, dando a devida prioridade a eles, uma vez identificados por seus próprios mecanismos, ou através de denúncias da comunidade de usuários.
Mas atenção: nesses casos, cabe também preservar os conteúdos e os metadados da conta e informar às autoridades competentes sobre o ocorrido. A Safernet, por exemplo, acredita que a participação de Sara Winter no episódio deveria ter sido reportada ao STF, por tratar de conta criada por pessoa investigada no inquérito 4828, com medidas cautelares expedidas e de conhecimento das plataformas.
Portanto, indisponibilizar o acesso ao conteúdo deveria ser uma obrigação moral das plataformas, desde o momento das primeiras postagens. Na opinião da Safernet, por exemplo, elas deveriam ter escalado a flag para as equipes de moderação humana de plantão no final de semana.
Essa obrigação moral passou a ser uma obrigação legal a partir da emissão da ordem judicial para remoção dos conteúdos. Para a maioria, uma decisão acertada do magistrado. Inclusive em relação ao prazo de 24 horas.
Ah! O juiz poderia ter solicitado a suspensão dos perfis infratores? Está aí um ponto polêmico. Alguns advogados sustentam que banir o perfil seria o equivalente a “cortar a mão” de quem rouba, ou mutilar ou castrar quimicamente quem estupra. Forte, né?
Para a Safernet, o Twitter deveria ter retirado o perfil do ar por violação dos seus termos de uso, uma vez que ele diz que a plataforma adota “uma política de tolerância zero para ameaças violenta. Quem compartilhar ameaças violentas terá a conta suspensa de maneira imediata e permanente”.
E, sim, a exposição dos dados pessoais de uma criança é uma violência. Tanto que a família pode buscar reparação civil da autora do post e, também, de quem compartilhou. É inegável que o “chamamento” feita pela conta da Sara Winter colocou em risco a segurança da criança, de sua família e dos profissionais de saúde do hospital
Vale lembrar aqui que a responsabilidade criminal da plataforma, prevista no artigo Art. 241-A do ECA, só se aplica para conteúdos contendo “cena de sexo explícito ou pornográfica” de criança ou adolescente.
Não resta a menor dúvida, no entanto, que “precisamos falar sobre a exposição de dados de crianças e adolescentes na Internet”, ressalta a campanha que a Safernet iniciou nas redes sociais. Nela, a instituição lembra que a exposição de dados pessoais na rede configura doxxing. E que quem comete doxxing contra menores de idade pode responder civil e penalmente.
“O episódio da criança que engravidou após sofrer anos de estupro revelou que a violência não parou aí. Ao ter sua identidade exposta na rede, a criança sofreu outra violência. E isso não pode ser aceito ou naturalizado”, afirma o post da Safernet no Instagram.
A informação é do UOL